O atual momento da Associação Médica Brasileira (AMB) é direcionado a enfrentar os grandes desafios da classe médica em todo o país, principalmente, relacionados à pandemia da Covid-19
Além dos problemas estruturais e de gestão pública e privada, o exercício médico está em questão em diversas esferas e realidades. A valorização da medicina é o foco da AMB, que também está alinhada ao posicionamento da Sociedade Brasileira de Infectologia. O presidente da AMB, César Eduardo Fernandes, concedeu uma entrevista especial ao Boletim SBI e fala sobre negacionismo científico, a importância da medicina e, claro, sobre a pandemia que o Brasil e o mundo enfrentam há mais de um ano.
Hoje, qual a prioridade da AMB, em relação ao exercício da medicina e quais os principais desafios?
A situação do médico no Brasil é preocupante. Já o era e se agravou com a pandemia. Estar na diretoria da Associação Médica Brasileira, com um grupo gestor qualificado e comprometido, permite-nos ir a fundo em ações para reverter esse quadro. Sempre defendi e defendo que o trabalho médico deve ser valorizado de forma condizente com a complexidade e a responsabilidade. Também necessitamos de estrutura adequada e dos demais pré-requisitos ao exercício da melhor Medicina e de assistência de qualidade a todos os pacientes.
De que forma a pandemia de COVID-19 expôs a realidade da saúde brasileira, em particular da medicina?
Sinto enorme orgulho da atuação diária de nossos pares, especialmente aqueles que atuaram e os que estão até agora na linha de frente do combate a COVID-19. Esses colegas sempre estiveram cientes da sua importância social nesse momento de crise, trataram milhares de pacientes, se expondo à contaminação. Perdemos muitos médicos, a população reconhece a entrega e trata os que enfrentaram a pandemia (e à classe) como guerreiros, heróis. Nos sensibiliza profundamente o reconhecimento do cidadão, entretanto não podemos achar (e não pensamos assim, ao contrário) que isso resolve o problema da atuação do médico. O que nós médicos pleiteamos? Queremos condições dignas de trabalho para bem exercer nossa profissão, para oferecer de melhor o que a Medicina tem frente aos atuais conhecimentos, com todas as ferramentas necessárias de diagnóstico e tratamento em prol da população. Nossa meta é invariavelmente o exercício digno e competente da Medicina. Por outro lado, queremos ser reconhecidos − não como heróis, mas profissionais competentes com longa curva de aprendizado, formação de alta complexidade, resiliência ao elevado estresse e comprometimento. Almejamos ainda ser remunerados de acordo com a relevância das atividades essenciais aos brasileiros, e que exige longo processo de formação, aprendizado e estudo contínuo. Nossa profissão está precarizada e precisamos dar um basta nisso. Os governantes têm de ser responsáveis com a saúde de um modo geral e com os profissionais da área. Assim, como presidente eleito da AMB, registro com todas as letras que o governo nos deve demais, aliás, há décadas está em dívida.
O posicionamento atual da AMB está alinhado com a Sociedade Brasileira de Infectologia?
Absolutamente alinhado com a SBI. Aliás, a Sociedade Brasileira de Infectologia é nossa referência maior em todos os temas relacionados diretamente com a especialidade ─ e nossa voz oficial. A AMB acredita e defende a ciência. No campo da infectologia, a excelência da ciência, do conhecimento, está na SBI.
A propósito, as sociedades de especialidade médica são a alma da Associação Médica Brasileira, assim como o são nossas Federadas. A AMB nasceu com uma missão científica há 70 anos e isso a fez grande, importante à Ciência e à Medicina do Brasil. Repito: a Associação Médica Brasileira falará sempre junto e em consonância com as especialidades, para apoiá-las e fortalecê-las cada vez mais e, consequentemente, para que seus associados sejam ainda mais valorizados, reconhecidos, respeitados e recebam remuneração adequada, justa.
A política pública em relação à pandêmica de COVID-19 apontou uma série de problemas graves da saúde expressos nos altos índices de contaminação e de mortes. Isso tem provocado um embate entre pesquisadores, médicos e a própria sociedade civil. A AMB deve agir em relação ao negacionismo científico, por exemplo?
A AMB repudia os que negam a ciência, os que plantam notícias falsas e enviesadas prejudicando a saúde e a medicina de alto nível. Isso não existe. Se não à Ciência, vamos recorrer a quem? Aos curandeiros? Aos bruxos? Aos milagreiros? Na tragédia brasileira há, sem dúvida, o dedo daqueles que espalham fake news, que desinformam a população, criam cizânia entre médicos e profissionais de saúde. A COVID-19 não é uma gripezinha. Já matou mais de 250 mil. A Associação Médica Brasileira se solidariza mais uma vez com todos os cidadãos do país. Expressamos os sentimentos de todos os seus diretores e médicos em especial aos familiares e aos amigos das vítimas. Faz tempo, todos registramos consternação com o que ocorre no Brasil. É mais do que evidente que a tragédia já deveria ter sido encarada com a responsabilidade que requer. Lamentavelmente, até hoje não temos um plano de vacinação consistente e, pior ainda, nem vacinas para todos os brasileiros.
A pandemia é sim implacável, aqui e em todo o mundo. Porém, muitos países menores e mais pobres do que o Brasil foram (e seguem sendo) eficientes no combate à COVID-19 e na defesa da saúde de suas populações. Milhões de brasileiros estão em risco. O fantasma de esgotamento do sistema médico-hospitalar é risco real.
A formação do médico brasileiro assim como as residências médicas são pontos-chave para a atual gestão da AMB?
É imperioso manter um elevado padrão de qualidade na educação médica. Preocupa-nos extremamente a abertura indiscriminada de novas escolas médicas. Acredito que a maioria não tem condição de oferecer formação suficiente para um profissional. Defendo, portanto, uma política de revisão das liberações de funcionamento das escolas. E que, claro, não haja continuidade de faculdades que não reúnam condições comprovadas para a boa capacitação. Do mesmo modo, defendo reavaliação sistemática, criteriosa e justa a todos os programas de Residência Médica para checar se possuem as competências exigidas pelo Ministério da Educação.
Como a AMB analisa a presença de médicos estrangeiros no Brasil assim como a equivalência de diplomas de médicos formados fora do Brasil?
Qualquer médico que quiser trabalhar no Brasil será recebido de braços abertos pela AMB e, tenho certeza, pelos nossos 550 mil médicos. Só um parêntese: desde que ele se submeta às avaliações necessárias para confirmar sua capacitação e qualificação. Passando por exames de revalidação, se for aprovado, ótimo. Será um a mais para apoiar a assistência à população. Quem não se submeter a comprovar sua capacitação, não pode ser médico aqui nem em qualquer lugar do mundo, se permite uma opinião de médico e também de cidadão. O mesmo vale para os reprovados na avaliação. Se não estão aptos, não podem ser médicos, pois trabalhamos com vidas. É sério, é gente.
A valorização profissional também é um dos focos da AMB. Como isso está sendo trabalhado?
Essa é uma área que requer 100% de compromisso e 200% de trabalho. Quando entrei no associativismo efetivamente, já se vão mais de dez anos, fui eleito para a presidência da SOGESP (Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo). Vivíamos uma situação muito desalentadora no que diz respeito à assistência ao parto, extremamente desvalorizado. Eram vergonhosos os honorários que se pagavam na saúde suplementar e os médicos estavam sem interesse nesse atendimento. Então, fizemos uma campanha intensa com grande divulgação na mídia. Talvez esse seja o maior dividendo que tivemos, com o engajamento de toda a comunidade de ginecologistas e obstetras, com ações feitas em vários locais públicos. Assim, mudamos a relação de precariedade que vivíamos. Ainda está longe do que gostaríamos, mas certamente o trabalho, a virada ficou no coração dos médicos. Assim como a convicção de que tínhamos uma sociedade que caminhava ao lado deles. Agora, na AMB, criamos um núcleo de Defesa Profissional e vamos partir para o ataque, no bom sentido. Iremos a todas as fontes pagadoras argumentar, com números e provas, que o médico deve ser valorizado imediatamente. Seremos firmes, e creio que os sensibilizaremos. Se a sociedade reconhece nosso valor, as fontes pagadoras têm de pensar nisso também. E agir.
A relação com seguros e planos de saúde é uma questão importante para a AMB?
Quanto à saúde suplementar, as relações também vêm piorando para o médico, ano a ano. Aliás, a remuneração vil faz com que muitos prefiram fechar os consultórios, passando a trabalhar apenas como empregados. A questão é que sofrem com vínculo empregatício precários, honorários defasados, pressões que atentam contra a autonomia profissional etc. Vamos cobrar dos legisladores e dos gestores de saúde suplementar reconhecimento ao exercício digno da medicina, para permitir a educação continuada, carga horária compatível e para remuneração adequada. Não admitimos interferência na autonomia. Vamos dar um basta a pressões para reduzir solicitações de exames e procedimentos essenciais ao paciente, ou para antecipar altas ou para evitar internações. Aqueles que agem assim compactuam contra a vida: não ficaremos calados frente a eles.
É inadmissível ainda um médico cumprir carga horária de 50, 60, 70 horas, amarrado a três, quatro vínculos para compor o orçamento, para fazer frente às necessidades de atualização profissional e ao seu sustento da família.
Hoje o foco no Brasil e no mundo é a pandemia, mas temos outros problemas de saúde que envolvem as mais diferentes especialidades médicas e dependem de uma política de atenção. Como a AMB buscará atender os vários problemas que abrangem a população em geral?
Nessa pandemia, o papel da AMB vem firmado e reafirmado. Atuaremos sempre junto à população, esclarecendo os riscos, levando, sem quaisquer conflitos de interesse, medidas profiláticas oferecidas, quais estão efetivamente aprovadas e com evidências científicas demonstráveis. Não se pode colocar a AMB, uma instituição de elevada credibilidade, em linha com interesses partidários ou ideologias políticas quaisquer que sejam. Essa é uma das missões fundamentais da Nova AMB, levar a verdade científica em prol da prevenção da contaminação pelo vírus da COVID e disseminar informações confiáveis, isentas, medidas eficazes do ponto de vista de tratamento. Enfim, esclarecer a população, ter papel educativo de orientação. Por outro lado, cobraremos do governo que as ações para a prevenção e tratamento sejam efetivamente implantadas. O estado deve prover os médicos de condições adequadas em segurança e dignas, como equipamentos de proteção individual, para evitar a contaminação e minimizar as vidas perdidas, que já são muitas nessa pandemia preconceito que muitos pacientes com hanseníase ainda sofrem”, diz Gaggini.